DO TERMO AO
TEXTO: NOVAS TENDÊNCIAS DOS ESTUDOS TERMINOLÓGICOS DE PERSPECTIVA LINGÜÍSTICA
Maria
José Bocorny Finatto, UFRGS, Instituto de Letras, Projeto TERMISUL, Porto
Alegre- RS1.
1-
A TERMINOLOGIA: DO NORMATIVO E CONCEITUAL AO DESCRITIVO E LINGÜÍSTICO
A Terminologia é uma disciplina recente, voltada
para o estudo de fenômenos relativos à comunicação técnico-científica e que
nasceu distanciada de uma reflexão lingüística propriamente dita. O fato de ter
sido fundada por um engenheiro, entusiasta do esperanto como língua universal,
cultor das linguagens técnico-científicas sem ambigüidades, ajuda a compreender
a origem e propriedade de algumas das suas oposições dicotômicas mais fundamentais:
linguagem e conhecimento; palavras e termos; conceitos e significados. Essa
Terminologia, hoje compreendida como uma vertente "clássica" ou
tradicional, não se aproximou muito dos estudos lingüísticos porque lidava com
termos padronizados e não com palavras, com conceitos e com conhecimentos e não
com significados de palavras "comuns".
Em seu recente percurso evolutivo, a partir de 1980,
a Terminologia passou por uma primeira transformação importante, tendo se
integrado de modo mais efetivo ao panorama da Lingüística Aplicada. A partir de
então, a linguagem especializada passa a ser estudada principalmente por seus
aspectos lingüísticos, sobretudo lexicais, respeitando-se o corte saussuriano
entre sistema e fala, vindo depois o corte competência/desempenho.
Isto é, ao mesmo tempo em que se opera um
deslocamento do plano estritamente conceitual para o plano lingüístico, dá-se,
na nossa disciplina, uma passagem da dimensão normativa à dimensão descritiva.
No desenrolar desse processo, tornam-se itens de estudo as condições
gramaticais das terminologias, mormente as mais atinentes à competência
gramatical especializada. Numa primeira etapa dessa transformação, o uso vivo
da linguagem em textos ainda recebe uma atenção não muito grande posto que a preferência
de estudos incide sobre condições gramaticais mais estritas.
Antes disso, na fase inicial da Terminologia, aquela
clássica antes referida, em função da predominância de aspectos cognitivos e de
normatização sobre aspectos lingüísticos, o estudo da linguagem
científico-técnica, quando seguia algumas questões de linguagem, em geral não
ultrapassava aspectos morfossintáticos. Tinha-se em vista a construção mais
adequada de denominações para conceitos. Prevaleceu, num primeiro período
fundador da disciplina, o reconhecimento de nomes padronizados, preferentemente
os exarados por instituições e associações de classe profissional que
regulamentam as expressões de técnicas e de ciências. Entre os principais
rendimentos da fase normativa, temos a obtenção de glossários, dicionários e de
outros repertórios de termos, especialmente os que envolvessem mais de um
idioma, tendo-se em vista facilitar o fluxo da informação em nível
internacional e torná-la tão unívoca e homogênea quanto possível.
Mais tarde, verificamos uma segunda etapa de
transformações da Terminologia de perspectiva lingüística. Continuando a
oposição à Terminologia conceitual, a partir de trabalhos pioneiros como os de
Alain Rey (1979) e L.Hoffmann (1982) e de outros autores, passa-se a compreender
que o reconhecimento terminológico deverá incluir também especificidades de uma
dimensão maior, a dimensão do texto.
Nesse rumo, caracterizar a linguagem especializada
implicará, além de observar especificidades gramaticais e um vocabulário
específico, a consideração de um determinado tipo de texto, o texto
especializado. Esse texto que se busca compreender será apreendido em suas
diferentes modalidades, sendo reconhecido como mais ou menos especializado ou
mais ou menos terminologicamente denso em função de diferentes fatores. Em
conseqüência disso, também esses fatores necessitarão ser contemplados à luz de
uma abordagem lingüístico-textual que vai se firmando na Terminologia
lingüística. Coloca-se assim, aos poucos, a idéia de que, num enfoque da linguagem
em si mesma, cuja via de acesso primeira fosse a própria linguagem e não apenas
o conhecimento, não seria produtivo desvincular termos e textos (para outros
detalhes dessa relação, veja KOCOUREK, 1982 e 1991).
Mas, de modo contrário, na Terminologia de vertente
"clássica", seguiu predominando o entendimento de uma "língua de
especialidade" à parte da língua comum, à semelhança de um sistema
artificialmente construído. A propósito, vale salientar que, já desde a
primeira fase de transformação da Terminologia lingüística, passou-se a
defender que uma "língua" das ciências e das técnicas não deixa de
ser uma língua natural, postos em destaque primeiro os aspectos regulares e,
num segundo plano, os de um uso particular de linguagem por parte de um
segmento de falantes em situação de comunicação profissional. Esse uso,
atualmente merecedor de descrição análise em novas dimensões, consubstancia-se
em textos.
2- PARA UMA TERMINOLOGIA TEXTUAL
A partir do momento em que se reconhece que o texto
especializado é o habitat natural das terminologias, algumas vertentes da
Lingüística Textual, sobretudo as de influência germânica (BRINKER,1988;
ISENBERG, 1983; HEINEMANN, VIEHWEGER, 1991), mostram-se especialmente
produtivas. Isso porque muitos de seus autores já haviam se dedicado ao estudo
do texto técnico-científico e ao estudo da Fachsprache [língua ou linguagem
especializada]. Nasce, então, dessa compreensão e do desafio de ultrapassar as
análises morfossintáticas, oracionais e frasais, uma Terminologia que podemos
qualificar como "textual" e que, obviamente, já vinha acompanhando o
movimento da Lingüística Textual especialmente desenvolvida entre 1976 e 1984.
Numa primeira perspectiva dos estudos terminológicos
textuais, diversos elementos e propriedades, tais como condições e recursos de
coesão e de coerência, macro e microestruturas, fraseologias, construções
recorrentes, definições, paráfrases, e as mais variadas
"peculiaridades" de texto, além de um léxico mais ou menos marcado,
entram em consideração de um modo diferente de um enfoque oracional. Passa-se,
enfim, da frase ao texto.
Na seqüência, numa posterior extensão do enfoque
sobre a sintaxe do texto, ensaia-se ir além do dito e das unidades
concretamente realizadas. Englobam-se os modos de dizer peculiares de cada área
de conhecimento. Assim, o modus dicendi técnico-científico passa a ser admitido
como fator constitutivo do texto e da linguagem especializados. Isto é, entram
em questão também a semântica e a pragmática do texto. Merecerão, portanto,
todos os elementos que perfazem o texto o estatuto de tópico de investigação
para além dos limites do que já houvesse sido tratado numa estilística do texto
técnico-científico.
Nesse percurso recente da Terminologia, que vai da
percepção do termo isolado ao termo integrado em um ambiente textual e
vinculado a um todo de significação que é o texto, perpassado pela apropriação
da linguagem por um segmento social, é que nos situamos hoje como
lingüistas-terminólogos tratando do texto técnico-científico em suas diferentes
modalidades e circunstâncias2. Consideramos importante, nesse trajeto da nossa
disciplina, a contribuição basilar de L. Hoffmann (1982, 1984 e 1988) e também
nos permitimos chamar a atenção para o potencial de contribuição das diferentes
teorias de texto e de discurso, entre as quais destacamos as teorias de
enunciação, especialmente as inspiradas nas idéias de Benveniste (1995 e 1989).
Esse último destaque se justificará à medida que
possamos compreender que também nos falares da ciência há apropriação da
linguagem por parte de um locutor que se constitui como um EU que é
simultaneamente um indivíduo e um porta-voz autorizado de uma ciência ou de um
conhecimento. A partir de um referencial enunciativo, valeria observar que no
texto científico, assim como em qualquer outro texto em linguagem natural, há,
entre outras coisas, subjetividade (para maiores detalhes, veja FINATTO, 2001).
Essa subjetividade, entretanto, não é algo
equiparado pela tradição do positivismo lógico do círculo de Viena (AYER,1965)
àquilo que se poderia entender apenas como falta de objetividade. Antes disso,
corresponde à existência de um sujeito enunciador que se manifesta e se
constitui como tal na e pela sua enunciação. Haveria, assim, mesmo no caso do
texto da área mais dura ou "exata", um sujeito que personifica tanto
a voz da ciência, construto simbólico revestido de valor sócio-cultural
coletivo, quanto a sua própria voz individual, a voz de um cientista ou
tecnólogo que tem uma determinada concepção desse saber e da própria interlocução
que se estabelece via texto. Entretanto, bem sabemos, esses aspectos, entre os
quais se destacariam, por exemplo, as modalizações, virão a ser bem explorados
numa futura terceira nova etapa da Terminologia lingüístico-textual.
3-
DA CONTRIBUIÇÃO DE LOTHAR HOFFMANN: TEXTOS E TERMOS
Como se costuma reconhecer, os termos, quer dizer,
as terminologias, são as unidades semânticas dominantes ou mais salientes nos
textos técnico-científicos. Não obstante, o termo é uma unidade lexical e sua
acepção estará definida no texto-fonte, integrando a totalidade da tessitura
textual. Nessas condições, duas dimensões ficam em relevo: a da "palavra
técnico-científica", algo que se busca isolar por meio de uma marcação
sintático-semântica ou morfossintática; e a dimensão mais ampla do texto-signo,
na qual uma série de fatores estão envolvidos.
Nesse processo de reconhecimento, o texto e o
sistema da língua são complementares. E, como bem explica Kocourek (1991), os
termos, em um cenário de comunicação, não são somente elementos do sistema da
língua, mas também ocorrências no interior dos textos. A complementaridade da
abordagem textual e sistêmica, assim, torna-se algo essencial ao
desenvolvimento da pesquisa terminológica. Nesse ponto, como é fácil perceber,
entrecruzam-se as duas fases de desenvolvimento da Terminologia lingüística
antes mencionadas, estabelecidas após uma natural hegemonia da escola clássica.
Na direção de uma Terminologia textual, que não é
capaz de desvincular termos e textos, destaca-se a contribuição fundamental de
L. Hoffmann. Essa é uma contribuição que, conforme vemos particularmente, ainda
merece ser resgatada nos dias atuais, sobretudo porque teve a obra do autor uma
circulação mais restrita às comunidades de fala germânica.
Entre tantos, a partir do seu trabalho de 1987,
Fachsprachen, Instrument und Objekt [Linguagens especializadas, instrumento e
objeto] publicado em Leipzig, encontramos a idéia de que os textos
técnico-científicos são objetos lingüístico-comunicativos fundamentais e complexos,
que incluem distintos níveis de análise. A partir desse trabalho, vemos também
que, no universo textual técnico-científico, entre outros elementos, incluem-se
os termos.
Como há, na sua concepção, a precedência do objeto
texto sobre o objeto termo, depreende-se uma perspectiva de Terminologia
textual que equivaleria a um estudo do texto que tenha termos e se distanciara
de um estudo de termos em textos. Isso sem dúvida, representa um ponto
importante de reflexão no escopo de uma perspectiva comunicativa da
Terminologia, hoje associada à chamada Teoria Comunicativa da Terminologia
(CABRÉ, 1999) que se afirma sobre uma teoria do termo.
Outra contribuição importante de Hoffmann, além do
direcionamento antes mencionado, reside na sua exploração das dimensões macro e
microestruturais do texto especializado, associadas às propriedades básicas da
textualidade, usualmente denominadas coesão e coerência no escopo da
Lingüística Textual. Conforme o autor (19983, p.155-169), macroestrutura e
coerência podem ser tomadas como características de um tipus textual
especializado.
A propósito, vale salientar que Hoffmann, à
semelhança do que fez Charolles (1978), um autor importante da Lingüística
Textual francesa, não usa o termo coesão, distinguindo apenas macrocoerência e
microcoerência. Nessa perspectiva, ressalta que o trabalho terminológico não
pode limitar-se à terminologia. Isto é, que não pode restringir-se apenas ao
"dicionário das palavras técnicas" de uma determinada especialidade.
Ao contrário, conforme defende, temos que tratar conjuntamente aspectos
textuais, sintáticos e lexicais, além de observar fatores extralingüísticos
(HOFFMANN, 1988, grifo nosso).
4-
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Resumindo o que dissemos até aqui, reiteramos que a
Terminologia permanece como uma disciplina voltada para o estudo de fenômenos
relativos à comunicação técnico-científica. Ao longo de seu percurso evolutivo,
depois de uma fase inicial em que predominaram aspectos normativos e
conceituais, foi privilegiado o enfoque de aspectos lingüísticos,
principalmente lexicais e gramaticais presentes na linguagens especializadas.
Mas, numa nova etapa, passou-se a compreender que o reconhecimento lexical não
pode desvincular termos e textos, unidades e o todo, e que a linguagem
especializada, além de aspectos gramaticais, deve ser observada a partir de sua
apresentação e inserção textuais, para o que as teorias de texto e de discurso
mostram-se especialmente produtivas.
Essa nova fase textual, como quisemos demonstrar,
não é algo tão novo assim, visto que trabalhos como os L. Hoffmann, produzidos
entre 1982 e 1988, já salientavam que a linguagem em geral e seus subsistemas
especializados perfazem um mesmo sistema que se atualiza em textos. Outros
pontos fundamentais dos trabalhos desse estudioso pioneiro e que podem render
ótimos aprofundamentos nos dias de hoje são:
a) o texto é o signo lingüístico primário no âmbito
de uma Terminologia lingüística;
b) conceito de texto especializado compreende o
texto além da dimensão escrita;
c) o léxico especializado vai além de nomes;
d) o vocabulário especializado, num sentido mais
estrito, compõe um subsistema do sistema léxico global, quer dizer, perfaz um
subconjunto do vocabulário total de uma língua;
e) no plano do vocabulário, podem ser tratados os
processos de restrição ou de ampliação semântica, das manifestações de
polissemia, homonímia e sinonímia, das estruturas e recursos para a formação de
palavras, entre outros.O vocabulário geral científico é uma espécie de média
entre os vocabulários especializados.
Antes de finalizar esta exposição, cabe ainda dizer
que aquilo que Hoffmann (1988) chamou de lingüística das linguagens especializadas
pode hoje ser compreendido como a Terminologia de perspectiva lingüística dos
anos 2000. O progresso antevisto e, ao mesmo tempo, interrogado pelo autor
estava numa ultrapassagem em direção à concepção do texto como um objeto
fundamental da nossa área de estudos. Afinal, como explicou à época, embora o
trabalho terminológico já fosse usualmente compreendido como uma parte dessa
lingüística, na verdade, ainda se detinha em apenas um núcleo das linguagens
especializadas - ocupava-se apenas da
terminologia.
Olhando esse passado e o nosso futuro como
pesquisadores de Terminologia no Brasil, podemos dizer que era (e ainda é)
preciso mais. Mesmo a Escola Clássica da Terminologia, a chamada Escola de
Viena, cuja orientação permanece predominantemente conceitual, não parou no
tempo e segue elaborando seus próprios questionamentos e debates. Veja-se, por
exemplo, a obra Terminologie unter der Lupe [A Terminologia sob uma lupa] de
LAURÉN; MYKING; PICHT, 1998 e o artigo de TOFT (2002).
Nesse "mais" há pouco mencionado é que
queremos nos empenhar para que a nossa área de estudos, que é uma área em
franca expansão no panorama acadêmico nacional, deixe de ser tida como algo
nebuloso em meio às diferentes tendências mais específicas e consolidadas dos
estudos lingüísticos da atualidade. A Terminologia estuda a comunicação
especializada e lhe é inerente aproveitar as mais variadas perspectivas dos
estudos lingüísticos, pois nos interessam tanto o todo da linguagem
técnico-científicas quanto suas partes, mecanismos e propriedades.
Por isso, já há trabalhos sobre terminologias e
sobre textos especializados que aproveitam desde a perspectiva minimalista
chomskyana até aqueles que se valem de elementos da Análise de Discurso de
linha francesa. Se o termo, unidade de significação especializada, principal
objeto da Teoria Comunicativa da Terminologia, hoje é defendido como uma
unidade poliédrica e como um valor ativado no discurso/texto, também a
Terminologia lingüística precisará ser multifacetada para enfrentar a complexidade
dos seus objetos, inclusive os textuais.
5-
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1mfinatto@terra.com.br
2 Essa perspectiva tem sido a adotada pelos
trabalhos teóricos e aplicados do Projeto TERMISUL. Veja www.ufrgs.br/termisul.
3 Esta obra é uma coletânea de artigos do autor, organizada pela Prof. Dra. Jenny Brumme, Universidade Pompeu Fabra, Barcelona. Contendo textos mais antigos e mais recentes de L. Hoffmann, oferece um bom panorama da sua produção. Os textos do autor aparecem traduzidos do alemão para o catalão.