O USO DA VARIANTE
RETROFLEXA NA FALA DE S.J. DO RIO PRETO
(THE USE OF RETROFLEX VARIANT IN S.J.RIO PRETO
SPEECH)
Luciana Prudente GUIOTTI (PG- Universidade Estadual Paulista - S. J. do Rio Preto)
ABSTRACT: This paper aims to describe a set
of linguistic and social factors that determine the use of retroflex variant
and its alternatives in São José do Rio Preto dialect.
KEY WORDS: Sociolinguistic, variable,
retroflex variant, stigmatized variant.
0.Introdução
Um dos traços lingüísticos mais marcantes que caracterizam São José do Rio Preto é a pronúncia retroflexa do fonema / r /, pejorativamente denominada r-caipira, circunscrita talvez unicamente à posição final de sílaba. Estudos anteriores observaram que esse traço dialetal, peculiar à região norte de São Paulo e sul de Minas, está em vias de desaparecimento (Head, 1973). No entanto, a conseqüente reaparição dele, por meio do sucesso recente de duplas sertanejas, acompanhado de uma valorização econômica do interior do estado, como um importante mercado consumidor, estimulou, no jovem de alta classe, o gosto por roupas e adereços de estilo country, bem como por um tipo de rock romântico, típico da década de 60 e início da de 70, travestido de música sertaneja.
Essas duas observações, que parecem conflitar, justificam a investigação sociolingüística deste trabalho que se propõe a esclarecer se há a manutenção da variante retroflexa, por reavaliação da figura cultural do caipira, ou o desaparecimento dela, por razões de preconceito lingüístico que o cosmopolitismo contemporâneo ajuda a difundir.
Desse modo, este trabalho de pesquisa, fundamentando-se nas considerações teóricas básicas da sociolingüística laboviana - que procura estudar e sistematizar os fenômenos de variação lingüística - visa a analisar a variante retroflexa [ } ] em São José do Rio Preto, observando: se é estigmatizada ou não, se está em vias de desaparecimento ou de manutenção e o aparecimento de outras variantes possíveis no mesmo contexto.
1. Considerações metodológicas
Esta pesquisa é dividida em duas partes: 1. a avaliação da norma objetiva, que inclui os fatores internos do sistema lingüístico: a natureza da vogal precedente e a posição em que ocorre a variante; e os fatores sociais: idade, sexo e classe econômica do informante; e 2. a avaliação da norma subjetiva, que mede a reação subjetiva às diversas alternativas de / r / em termos indiretos, mediante formulário de respostas, em que o informante indica, entre profissões de diferentes graus de prestígio social, a que o indivíduo presumivelmente ocuparia falando do modo como se expressa numa gravação.
A amostragem
consiste em doze entrevistas de um corpus com 60 entrevistas de
informantes nascidos na cidade de São José do Rio Preto ou que residam nela
desde os cinco anos de idade. No levantamento, utilizou-se a metodologia
proposta por Labov (1972) para representar graus variáveis de formalidade, que
pressupõe narrativas de experiência pessoal, leitura de um texto e de lista de
palavras.
Como se conta com a possibilidade de ser estigmatizada a variante retroflexa, é importante o estudo da freqüência em diversas faixas etárias das variantes lingüísticas socialmente marcadas, para ser possível prever se está em vias de manutenção ou desaparecimento e o estudo das diferenças na ocorrência de tais variantes entre pessoas que representam diversas classes sócio-econômicas, diferentes sexos e diferentes graus de escolaridade, o que permitirá, juntamente com o levantamento estilístico, verificar o grau de estigmatização das variantes.
Foram consideradas duas classes sócio-economicamente opostas, que incluem pessoas com formação universitária e ocupação de prestígio, por um lado, e, por outro, pessoas com formação de primeiro grau que exercem profissões que não exigem mais que habilidades manuais. Dividindo-se as três faixas etárias (15 a 30, 31 a 45, e mais de 46 anos) em duas classes sociais, devidamente separadas por sexo, obtivemos doze grupos distintos que estão representados neste trabalho.
Além da avaliação da norma objetiva, que se faz do exame de dados gravados a partir das realizações do próprio informante, este trabalho adiciona uma segunda dimensão, que é a avaliação subjetiva das variantes. Para tanto, utiliza-se a metodologia empregada por Labov (1974) a fim de testar previamente o grau de estigmatização das variantes. Assim, aos informantes foi aplicado um teste idealizado de acordo com os seguintes critérios: para cada sentença os informantes deparariam com uma lista de quatro ocupações, de diferentes graus de prestígio social: locutor de rádio, secretário, recepcionista e faxineiro. O informante deveria indicar, assinalando com um x, a ocupação mais provável que o locutor deveria exercer, tendo como critério exclusivo de julgamento a pronúncia das sentenças ouvidas numa gravação. O objetivo deste teste é verificar se as variantes selecionadas são de fato estigmatizadas pelos falantes da comunidade de São José do Rio Preto.
Para o processamento desses dados, foram atribuídos diferentes pesos para cada ocupação profissional, segundo o diferente nível de prestígio de que se acham imbuídas. A locutor de rádio, a de maior prestígio relativo, atribui-se peso 1, e daí sucessivamente, numa progressão aritmética à razão de 1, de modo que a ocupação de menor prestígio recebeu peso 4. A cada variante foi atribuído um índice final equivalente a uma média aritmética nos seguintes termos: o número de respostas dado para cada item lingüístico, devidamente distribuído pelas quatro ocupações, foi multiplicado pelo peso respectivo; a soma do conjunto foi dividida por 4. Essa operação aritmética foi necessária porque as respostas não incidiram sobre uma única ocupação para cada sentença do teste.
Todos os dados levantados foram submetidos a alguns programas do pacote VARBRUL (Sankoff, 1975). Como se trata aqui de um corpus reduzido, dois fatores não se mostraram variáveis em relação às alternantes em análise (caso de ‘knockout’), o que não permitiu, nesta fase, rodar o iVARB, que forneceria os pesos relativos.
2.Análise da avaliação objetiva das variantes
2.1. Fatores lingüísticos
A variante retroflexa está presente na fala da comunidade riopretense. Do total de 2149 (100%) ocorrências, 1526 (71%) foram retroflexas, sendo o restante dividido entre o apagamento do [ r ] (10%) e qualquer pronúncia não retroflexa (19%).
O primeiro fator examinado é a freqüência da variável dependente em relação ao grau de variação estilística, como mostra a tabela a seguir :
|
não-retroflexa |
Retroflexa |
apagamento
de /r / |
total |
||||
|
n |
% |
N |
% |
n |
% |
n |
|
Narrativa
espontânea |
26 |
5,0 |
286 |
55.0 |
211 |
40.0 |
523 |
|
leitura
de texto |
289 |
24,0 |
890 |
75.0 |
6 |
1.0 |
1185 |
|
leitura
de lista de palavras |
91 |
21,0 |
350 |
79.0 |
0 |
0.0 |
441 |
|
total |
406 |
|
1526 |
|
217 |
|
2149 |
|
Tabela 1 - Relação entre a variação estilística e a variável dependente.
A partir dos dados da tabela 1, nota-se que, mesmo quando a fala se torna mais monitorada, a variante retroflexa continua a existir e em percentagens muito mais elevadas do que as suas rivais. Em razão inversamente proporcional, ocorre redução de apagamento de [ r ] no final de formas verbais finitas, alternante cujos índices são estatisticamente insignificantes nos estilos mais formais de leitura de texto (1,0%) e leitura de lista de palavras (nenhuma incidência). Provavelmente, o que é apagamento de / r / no estilo informal torna-se retroflexo nos registros mais formais. Isso significa que os informantes estigmatizam mais a variante apagamento de / r / do que a variante retroflexa.
O segundo fator examinado, de natureza fonológica, é o efeito da vogal precedente sobre o uso da variável, conforme mostram os índices apresentados na tabela 2.
|
não retroflexa n
% |
retroflexa n % |
apagamento
do [r] n % |
total |
|||
[
u ] [ o ] |
57 |
13.0 |
362 |
85.0 |
7 |
2.0 |
426 |
[
a ] |
243 |
27.0 |
544 |
60.0 |
117 |
13.0 |
904 |
[
i ] [ e ] |
83 |
14.0 |
425 |
71.0 |
87 |
15.0 |
595 |
[
] |
0 |
0.0 |
88 |
99.0 |
1 |
1.0 |
89 |
[
E ] |
23 |
17.0 |
107 |
79.0 |
5 |
4.0 |
135 |
Tabela
2 - Relação entre a natureza da vogal precedente e a variável dependente.
A análise da tabela 2 mostra que, embora a variante retroflexa ocorra com freqüência mais significativa que as outras em todos os contextos fonológicos investigados, sua ocorrência é especialmente majoritária diante de vogais posteriores, como atestam os índices de 99,0% (88/89) para [ } ] diante de [ ] e de 85,0% (362/426) para [ } ] diante de [ u ] e [ o ]. Em seguida, o fator mais significativo é diante de anterior e o menor é diante de central. Isso já foi identificado por Pontes (1996:23), que estuda a variante retroflexa na comunidade de fala de Dourados - M.S., cuja conclusão atesta que o ponto de articulação desempenha grande influência na realização de [ } ], uma vez que está mais propensa a acontecer após as vogais posteriores [ o, u, ] e em uma escala menor após as vogais anteriores [ E, e, i ].
A tabela 3 abaixo apresenta os resultados da distribuição das três variantes investigadas em relação à posição em que ocorrem no vocábulo.
|
não-retroflexa n % |
Retroflexa n % |
Apagamento
de[ r] n % |
total |
|||
posição
travando sílaba |
141 |
16.0 |
728 |
83.0 |
13 |
1.0 |
882 |
diante
de pausa - final de vocábulo |
22 |
4.0 |
428 |
87.0 |
43 |
9.0 |
493 |
diante
de consoante - final de vocábulo |
4 |
1.0 |
327 |
79.0 |
84 |
20.0 |
415 |
diante
de vogal - final de vocábulo |
239 |
67.0 |
43 |
12.0 |
77 |
21.0 |
359 |
Total |
406 |
|
1526 |
|
217 |
|
2149 |
Tabela
3 - Relação entre a posição das variantes
no vocábulo e a variável dependente
Em relação à posição das variantes retroflexa, percebemos que a maioria ocorre no fim dos vocábulos, diante de pausa, como demonstra o índice de 87,0% (428/493). Em segundo lugar, a variante retroflexa ocorre em maior número no interior de vocábulos, como atestam os índices de 83% (728/882). Tais constatações confirmam nossas hipóteses e coincidem, com os resultados de outros trabalhos sobre o assunto (cf. Pontes (1996:24).
É esperado que, diante de vogal, a variante retroflexa quase não ocorra, como atesta o índice de 12% (43/359). Isso pelo fato de, nesse contexto fonológico, ocorrer a juntura intervocabular: quando a palavra termina com o fonema / r / e a seguinte começa por vogal, o fonema realiza-se como [ R ] em juntura de palavras, exemplo: [ ‘mar ] [‘ autu ] Õ [ m a‘Rautu ]. Esses resultados confirmam nossas expectativas, já que é natural que, em posição final, o fonema consonantal em geral forme sílaba com a vogal da palavra seguinte.
Desse modo, já podemos apontar um contexto lingüístico que favorece a ocorrência do r-retroflexo, com base nos fatores lingüísticos ora analisados: a ocorrência de vogal precedente posterior (aberta ou fechada) e finais de vocábulos diante de pausa ou interior deles, travando sílaba: [ a‘mo} ] [ ‘f}tSi ]; [ ‘k}tSi ]; [ ‘a}tSi ]; [ ‘a}ma ] etc.
2.2. Fatores sociais
O primeiro fator social examinado foi sexo. Constatou-se entre o total de ocorrências de [ } ] que são mulheres que mais utilizam a variante, com 54% das ocorrências contra 46% dos informantes masculinos.
Tais percentuais contradizem aparentemente as afirmações de Paiva (1994:70) de que as mulheres favorecem a ocorrência das formas mais prestigiadas socialmente. Essa contradição é aparente porque grande parte das mulheres, principalmente as com idade acima de 50 anos, que, nascidas em São José do Rio Preto, passou grande parte de sua vida circunscrita ao ambiente doméstico sem ter maior contato com espaços sociais em que se empregam mais as variantes socialmente prestigiadas.
O fator analisado em seguida foi classe social. Observou-se que os informantes da classe alta realizam a retroflexão num percentual de 49% contra 51% da classe baixa. Embora haja uma pequena diferença, não nos cabe dizer, neste caso, que a quantidade de anos de escolaridade esteja interferindo no domínio das formas de prestígio ou no abandono das formas estigmatizadas, como afirma Votre (1994:36). O último fator analisado, na estrutura sociolingüística, foi idade. Do total de ocorrências de [} ], a faixa etária de 15 a 30 anos e a faixa etária de mais de 46 anos executaram o mesmo percental:33,15%. A faixa etária de 31 a 45 anos apresentou um percentual de 33,7%. Isso mostra que, na comunidade de fala investigada, o r-retroflexo não está em vias de desaparecimento, como afirma Head (op. cit.) em sua pesquisa em Franca.
3.Análise da avaliação subjetiva das variantes
Foi
possível, segundo o critério adotado (veja seção 1) discriminar quatro níveis
diferentes de estigmatização, com base no seguinte procedimento: se todos os
informantes escolhessem locutor de
rádio para a atualização das variantes, o índice não ultrapassaria 1,2.
Somente nesse caso extremo, é que a variante retroflexa seria considerada não
estigmatizada ou neutra. Se todos os informantes indicassem secretário,
seria possível obter um índice de 2,4. Assim, as variantes que se incluíssem na
faixa entre 1,2 e 2,4 seriam
enquadradas no nível de grau baixo de estigmatização. Se todos
escolhessem a ocupação recepcionista, o índice respectivo seria 3,6. Por
conseguinte, todas as respostas enquadradas na faixa entre 2,5 e 3,6
pertenceriam à classe grau médio de estigmatização. Se todos os
informantes indicassem a ocupação faxineiro, a de menor prestígio no conjunto,
a média aritmética resultaria num índice de 4,8; desse modo, todas as variantes
incluídas na faixa entre 3,7 e 4,8 apresentariam grau muito alto de
estigmatização.
A variante retroflexa recebeu índice 3,3 contra 3.7 de apagamento de / r /. A variante retroflexa se enquadra no grau médio de estigmatização, enquanto o apagamento de / r / no grau muito alto de estigmatização. Esse resultado aponta para uma tendência interessante da comunidade de fala investigada: embora os informantes estigmatizem a variante retroflexa e o apagamento de /r/, em relação à vibrante apical e a fricativa velar, aquela é ainda assim menos estigmatizada que esta.
4. Conclusão
Como vimos, na análise da avaliação objetiva, os resultados apontam a manutenção da variante retroflexa, mesmo em registros mais formais. Ao mesmo tempo, ocorre uma diminuição de apagamento de / r / (veja tabela 1). É possível que, em vez de apagamento de / r/, use-se a variante retroflexa nos contextos mais formais. Esses resultados apontam para a manutenção da variante retroflexa no desempenho objetivo, motivada talvez pela reavaliação positiva e progressivamente maior do interior do estado em virtude do crescimento da atividade econômica, em que pesem os inúmeros estereótipos do ‘caipirês’ que fazem ainda algum sucesso nos programas humorísticos da televisão, cujo representante mais significativo ainda é a pronúncia caricaturizada da variante retroflexa.
Em relação às demais variantes, a vibrante apical do dialeto paulistano e a fricativa velar do dialeto carioca, os resultados mostram, entretanto, grau baixo de estigmatização, em oposição à variante retroflexa e ao apagamento de / r /, que apresentam grau alto de estigmatização. Conquanto os resultados da análise da avaliação subjetiva confirmem os resultados da análise objetiva na direção de um grau relativamente pouco menor de estigmatização da retroflexa em relação ao apagamento, não deixam de confirmar também que a comunidade investigada mostra-se dividida entre a norma subjetiva e a norma objetiva, já que o grau de estigmatização demonstrado não é compatível com o uso da retroflexa, principalmente em situações formais.
RESUMO: Este trabalho pretende
descrever um conjunto de fatores lingüísticos e sociais que influencia o uso da
variante retroflexa na variedade dialetal da cidade de São José do Rio Preto.
PALAVRAS-CHAVES: Sociolingüística, variável, variante retroflexa, variante estigmatizada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
HEAD, B. F. O estudo do ‘r-caipira’ no contexto social. Revista de Cultura Vozes. v. 67, n. 8, 1973, p. 43-49.
LABOV, W. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1972.
_____. Estágios na aquisição do inglês ‘standard’. In: FONSECA, M.S.V. e NEVES, M.F. (1974). Sociolingüística. Rio de Janeiro: Eldorado.
PAIVA, M. da C. Sexo. In: MOLICA, M.C. (1994) (org.) Introdução à sociolingüística variacionista. 2a
Ed. Rio de Janeiro: UFRJ (Cadernos Didáticos).
PONTES, I. (1996). Regra variável e estrutura sociolingüística - um caminho para sistematização da variação lingüística. Araraquara: UNESP (Tese de Doutorado).
SANKOFF, D. VARBRUL. Mimeographed, Université de Montréal, 1975
VOTRE, S. Escolaridade. In: MOLICA, M.C. (1994) (org.) Introdução à sociolingüística variacionista. 2a Ed. Rio de Janeiro: UFRJ (Cadernos Didáticos).