A LINGUSTICA E A MDIA

Ataliba T. de Castilho (USP e Unicamp)

Maria Teresa Garcia (Jornalista da TV Globo)

Valria Paz de Almeida (Professora autnoma)


Resumo 

 No so poucos os casos em que a mdia discute ideias do campo da lingustica sem compreend-las ou, pior do que isso, condena as ideias antes de discuti-las. Episdios como a crtica, alguns anos atrs, ao livro didtico Por uma vida melhor, destinado Educao de Jovens e Adultos (EJA), mostram como a imprensa no se aprofunda nesse campo do conhecimento e, ao mesmo tempo, como os linguistas brasileiros tm tido dificuldades em passar para a mdia conceitos contemporneos das teorias lingusticas e o conhecimento acumulado sobre o portugus brasileiro. Este texto foi apresentado ao 61. Seminrio do GEL (Campinas, 2015), em mesa-redonda, na qual debatemos o assunto que ora apresentamos em linhas gerais. Estamos convencidos de que esta uma conversa ainda muito incipiente.


Palavras-chave: Jornalismo; Lingustica na mdia; textos para leitura na TV.



Introduo

      Objetivamos refletir nesta mesa-redonda por que os temas da Lingustica provocam tantos julgamentos precipitados e equivocados por parte da grande mdia e por que no se d aos linguistas o mesmo espao que se d aos gramticos e professores tradicionais. Em contrapartida, tambm nos propusemos a pensar sobre o que fazem ou podem fazer os linguistas para serem ouvidos e entendidos fora dos crculos acadmicos, com o fim de penetrar resistncias e divulgar a extensa produo de obras sobre a lngua falada e o portugus brasileiro, por exemplo, procurando sinais de conciliao nesse contexto to conflituoso. Especificamente, apresentamos um caso de sucesso nesse dilogo ainda muito novo, que a experincia que vem ocorrendo na TV Globo de So Paulo h alguns anos, por meio da divulgao e da aplicao de teorias lingusticas num trabalho de produo textual realizado com equipes de telejornalismo.            


Lingustica e mdia: um dilogo possvel

(Valria Paz, doutora em Letras pela USP, ex-consultora da TV Globo)


      Tudo comeou h 15 anos, quando fui trabalhar como consultora de linguagem e texto no departamento de jornalismo da TV Globo de So Paulo. Por muito tempo lamentei no estar na rea acadmica, mas insisti no trabalho que pra mim tambm era uma novidade e pensei que poderia ser um interessante campo de pesquisa. No comeo esperavam apenas que eu tirasse dvidas de gramtica, mas fui conquistando espao pra falar de questes ligadas lingustica e anlise do discurso, dentro da minha rea de formao e conforme minha convico. Fui ficando e as coisas foram acontecendo. claro que tem muita gente que ainda faz cara feia, que no entende nem quer entender o que eu tento passar sobre os conhecimentos lingusticos, mas isso no me assusta mais.

      Sempre vai ter gente assim, que, como diz o linguista Marcos Bagno, critica a falta de leitura, mas no se d ao trabalho de ler nada da lingustica pra deixar de se posicionar levianamente. Acho que nunca vamos conseguir falar com essas pessoas nem sobre lingustica nem sobre assunto algum, porque ignorncia, preconceito e intolerncia existem em todas as reas e interferem em todas as relaes sociais. Mas tem um monte de pessoas diferentes que querem ouvir o que temos pra dizer. 

      As mudanas de verdade comearam a surgir em 2009, quando a direo da TV mandou uma orientao para os telejornais serem mais conversados, mais coloquiais. A Teresa Garcia, que participou deste debate, era a editora-chefe do Jornal Hoje e veio falar comigo sobre a novidade, afinal eram tantos anos fazendo TV do mesmo jeito, que estavam todos meio perdidos. Perguntou como poderiam mudar e eu respondi: Enquanto vocs escreverem um texto pra ler, e no pra falar, o jornal nunca vai ser conversado. 

      Da pra frente a gente comeou um trabalho pra tentar levar uma linguagem mais coloquial para os jornais, mas tinha muitas barreiras, paradigmas e mitos pra derrubar. Aos poucos, pude comear a falar de coisas como gramtica da lngua falada, diferenas entre fala e escrita, gneros textuais, processos de retextualizao, portugus brasileiro, evoluo da norma culta, enfim, fui ampliando a divulgao dos estudos lingsticos como podia. 

      Muita gente passou a ouvir e a se surpreender (e eles se surpreendem muito com o que temos pra dizer), ento comearam a entender e a gostar. Afinal, de uma necessidade que a prpria TV criou, surgiu a curiosidade, a pacincia pra ouvir e um dilogo possvel. Claro que muitos continuaram surdos e fechados para o dilogo, afinal nosso projeto era meio extraoficial. A direo tinha lanado o desafio, mas no estava cobrando nada. So Paulo, como praa do Rio de Janeiro, saiu na frente, mas nada parecia mudar, porque no tnhamos ainda o aval de quem mandava pra valer. 

      Trabalhamos quatro anos com o pessoal do Jornal Hoje e dos jornais locais de So Paulo, falando de muitas pesquisas e pesquisadores que eles nem de longe conheciam, mudando conceitos na cabea deles, propondo formas de simplificar a linguagem e deixar os textos mais coloquiais, experimentando, errando e acertando. Muita gente de emissoras afiliadas participava dos encontros nacionais do JH, via as novidades e queria saber mais. Ento viajei pra Florianpolis, Recife, interior de So Paulo... e a ideia comeou a se espalhar. 

      Em meados de 2012, convidei o professor Ataliba de Castilho pra falar em So Paulo. Ele fez a proeza de prender a ateno de 50 jornalistas por duas horas e ento comecei a suspeitar que estvamos ganhando um espao muito importante. O professor ficou bem impressionado com aquilo e me batizou de agente infiltrada da lingustica na maior emissora de televiso do Brasil.

      Mas s em 2014 esse trabalho ganharia outra dimenso. Finalmente criaram um grupo pra discutir novos formatos e linguagens e o coordenador seria o William Bonner, apresentador e editor-chefe do Jornal Nacional. Ele comeou pedindo sugestes a todos os editores-chefes e a Teresa Garcia respondeu: Eu no tenho s uma sugesto, ns temos um projeto inteiro em So Paulo. Pronto! Ela mandou nosso material, falou dos resultados e o William Bonner se rendeu. Conversamos e ele levou a proposta pra direo de jornalismo, que aprovou tudo e decidiu que o projeto seria pra toda a rede a partir de 2015. 

      Foi ento que eu vi o tamanho da encrenca em que eu tinha me metido! Comecei a falar oficialmente pra todo mundo sobre questes lingusticas em condies bem mais favorveis, mas numa escala assustadora. J fui pra Salvador, Manaus, Goinia, Braslia, Belo Horizonte, Porto Alegre e interior de So Paulo. Comecei a dar cursos no Rio de Janeiro e em outras praas. Na abertura do curso, o William Bonner anunciou que a gente ia falar de lingustica, de portugus brasileiro... Finalmente eles reconheceram que isso tudo existe e faz sentido! 

      Agora todos tm que ouvir e, quando ouvem e superam o choque inicial, querem ouvir mais, porque descobrem que as pesquisas lingusticas podem facilitar e at melhorar o trabalho dirio deles. J ouvi muita gente dizer que foi conquistada por essa nova viso, que se sente mais livre, que esse projeto tirou um peso enorme do trabalho deles, que mudou a forma de ver o que eles fazem na TV h tanto tempo. Muitos reprteres de SP, que j sabem fazer um texto dentro da nova proposta, esto entrando com matrias no Jornal Nacional, antes um reduto quase inatingvel. 

      Em linhas gerais, o projeto que batizamos de projeto de lngua falada bem simples. Nas minhas apresentaes, chamo de Telejornal: um texto pra falar, no pra ler. De minhas observaes ao longo de muitos anos, conclu que o telejornal no um gnero hbrido, mas um gnero de produo escrita que somente lido (a fala apenas um canal), por isso propus um trabalho de retextualizao para aproximar sua organizao da modalidade falada, j que entendo que o telejornal um gnero que no deve seguir as estruturas e regras da escrita, principalmente porque as caractersticas da fala casam bem melhor com a dinmica narrativa que o texto deve ter nas matrias e na apresentao do jornal. 

      Uma questo central que o telejornal um texto mediado pelo veculo, ento no podemos entender que ele deve apenas imitar a fala espontnea ou fingir informalidade. preciso pensar na estrutura real do texto falado e tentar se aproximar desse modelo da forma mais natural possvel, eliminando certas caractersticas do texto escrito, que travam o texto de TV. preciso buscar o equilbrio entre as caractersticas que melhor podemos aproveitar dos dois cdigos (oral e escrito), evitando a tenso entre eles. Deve-se, pra isso, pensar de outro modo na hora de escrever, pra que o produto seja no um texto lido, mas um texto falado com mais naturalidade, de acordo com a individualidade de cada sujeito falante.

      Estamos, enfim, em pleno processo de mudana, mas claro que nem tudo uma maravilha. Ainda tem gente que torce o nariz e diz que a TV contratou uma professora pra ensinar a falar errado, pra decretar o fim da norma culta, pra dizer que falar ns vai certo e tantas outras distores que j cansamos de ouvir na nossa rea. Nessas horas, eu e a Teresa suspiramos e pensamos: Puxa, ainda tem tanto pra fazer... 

      Pois , mas a diferena que agora temos muito mais aliados e essa era a boa notcia que a gente queria dar. Existe um dilogo em curso, mas precisamos de mais linguistas dispostos a falar com a mdia sem impor uma viso que eles nunca vo entender se no sentirem que precisam do que temos a oferecer. E eles precisam muito, s que ainda no sabem. Ns s temos que ter pacincia e disposio pra investir nesse enorme e novssimo campo de trabalho.      


Perspectivas lingusticas e mudanas nos textos do Jornal Hoje

(Maria Teresa Garcia, jornalista da TV Globo)

      

      Nosso objetivo no debate foi analisar as relaes entre a mdia e a lingustica, valendo-nos da experincia da equipe do Jornal Hoje, da Rede Globo, que nos ltimos anos tem se empenhado em discutir e transformar os textos de suas reportagens. Discutimos, entre outras questes, como tensa e distante a relao dos profissionais de comunicao com os linguistas e como esse distanciamento tem sido prejudicial para ambas as partes. Por outro lado, mostramos que possvel mudar essa relao, em decorrncia das prprias mudanas na sociedade brasileira, que tm despertado, por vrias razes, o interesse dos profissionais de comunicao pelos estudos da lingustica.

      Por exemplo, o Jornal Hoje produziu uma srie de reportagens sobre os sotaques do povo brasileiro, que fez muito sucesso, e investiu num projeto que mostra e explica as caractersticas do portugus falado no Brasil, com a ajuda de muitos pesquisadores da rea, revelando uma parceria que pode dar certo na TV aberta. A professora Valria Paz props o tema e nossa equipe acolheu o projeto com grande entusiasmo, viajando por todas as regies brasileiras para mostrar A lngua que a gente fala, que acabou sendo o nome da nossa srie. 

      A repercusso foi to grande que a srie foi o assunto mais comentado no Twitter no dia da estreia. A reprter Ana Zimmermann, que fez as matrias dos quatro episdios da srie, nos escreveu depois contando dos efeitos colaterais da reportagem, que mudou seu modo de olhar para nossa lngua. Esperamos que tenha mudado tambm o olhar do pblico. No debate, mostramos algumas imagens de A lngua que a gente fala, srie que est disponvel na pgina do Jornal Hoje na internet.  

      Mas nossa contribuio nesse debate destacou, acima de tudo, o processo de reanlise dos textos do Jornal Hoje, durante o qual os profissionais passaram a observar as marcas lingusticas e discursivas da oralidade e da escrita e comearam a modificar a narrativa das reportagens, tentando aproximar sua estrutura da estrutura da fala. Essa experincia est em pleno curso e tem provocado impacto positivo na linguagem de reprteres, editores e apresentadores do telejornal, que antes resistiam ao que no se enquadrasse num certo padro de conhecimento da lngua. 

      Tudo isso, inclusive, est presente na dissertao de mestrado que desenvolvi em 2014, na rea de Cincias Sociais, sobre os efeitos provocados pelo crescimento da classe C brasileira na narrativa dos telejornais. Analisei, entre outros aspectos, as transformaes na linguagem, mostrando como a comunicao com o telespectador pode se tornar mais coloquial, a partir do uso da modalidade oral da lngua, e como podemos contar melhor as histrias que interessam a esse novo pblico. 

      Em funo do projeto que desenvolvemos na TV, com a orientao da professora Valria Paz, acabei conhecendo muitas obras da rea de lingustica e isso ajudou muito no mestrado e no meu trabalho dirio. Descobri que usar a estrutura, o vocabulrio e a gramtica do texto escrito numa reportagem dificulta muito a narrao. Um texto assim ser sempre mais prximo da leitura do que da fala. Ento comeamos a mudar a linguagem nas edies do Jornal Hoje e apresentei alguns resultados disso na dissertao.  

      Uma das caractersticas da fala que mais me chamaram a ateno foi a repetio como recurso de coeso, referenciao e reforo. A repetio sempre foi um tabu em textos jornalstico, mas percebemos, com o estudo da oralidade, que no fazia sentido evitar a repetio se queramos um jornal mais falado. Para que buscar sinnimos que nunca usamos ou refazer sentenas, s para no repetir as palavras, se isso to normal na fala? Quem que usa, por exemplo, a palavra aeronave no lugar de avio s para no repetir? 

      Outra coisa que a gente vivia corrigindo era o que se pensava ser um anacoluto indesejvel na fala dos reprteres, algo como em o prefeito, ele acabou de me dizer. Estudando a oralidade, descobrimos que isso uma construo de tpico, muito normal no portugus brasileiro, e passamos a aceitar com naturalidade. 

      Assim como passamos a ver sem susto a falsa mistura de pronomes, o uso do pronome reto como complemento verbal e tantas outras estruturas normais no portugus brasileiro, sobretudo falado. Ento j usamos sem problemas no Jornal Hoje frases como: Vamos mostrar pra voc uma das praias mais bonitas do Nordeste. A gente vai te levar pra Praia dos Carneiros, no litoral de Pernambuco ou Jussara aproveitou a promoo pra comprar a geladeira que ela queria tanto. E disse que comprou ela baratinho porque soube pechinchar. 

      H alguns anos textos to descontrados assim seriam censurados e reescritos pela maioria dos editores da TV Globo. Hoje existe mais liberdade, porque entendemos que, assim como a lngua muda, a linguagem de televiso tambm precisar se renovar. Esperamos que essa mudana tenha vindo para ficar, assim como nosso dilogo com as disciplinas e os profissionais da lingustica.


Lingustica para a mdia

(Ataliba T. de Castilho, professor emrito da USP e professor colaborador da Unicamp)


      Tem-se reconhecido o enorme avano da Lingustica nos ltimos 30 anos, expresso por iniciativas de xito na criao de novos programas de ps-graduao e amadurecimento dos programas j existentes, fundao de revistas especializadas, lanamento e concluso de projetos coletivos, publicao de obras de referncia, criao de novas reas de expanso cientfica, e assim por diante.

      claro que ainda h muito por fazer. Para lembrar apenas duas deficincias da Lingustica brasileira: Quando passaremos a produzir teorias, em lugar de apenas import-las? Quando deixaremos de lado o velho hbito de malhar a gramtica tradicional, em lugar de divulgar o que se tem descoberto sobre o Portugus Brasileiro? Nos dois casos teramos uma atuao mais pro-ativa e menos defensiva.

      Minha inteno consultar os interessados sobre a convenincia de se preparar um manual para envio aos jornalistas brasileiros, nos quais seriam apresentados em linguagem no tcnica os seguintes temas, pelo menos: (1) algumas generalizaes sobre as lnguas naturais: nascimento e morte das lnguas, variao lingustica, a heterogeneidade lingustica; (2) o Brasil como um pas plurilngue; (3) disciplinas de estudo da linguagem: Lxico, Semntica, Gramtica, Discurso; (4) o que se entende por regra gramatical; (5) alfabetizao e ortografia; (6) poltica lingustica, com nfase nas medidas relativas expanso internacional da lngua portuguesa.

      Redigi em 2014 uma primeira verso desse manual, com a participao de Carlos Alberto Faraco, Miriam Lemle e Stella Maris Bortoni. Resta saber se esse um caminho produtivo para o debate sobre a presena da Lingustica na mdia brasileira.


Concluses


      Os debates mostraram que esta nova rea de atividades exigir por parte dos linguistas uma sintonia fina do que vem a ser o trabalho dos jornalistas de televiso, para que se encontrem os meios adequados para a interao desejada.

      Em debate anterior, realizado no ltimo congresso da ABRALIN, um dos expositores alertou para o fato de que, dependendo do modo como se apresenta o assunto, o resultado pode ser desfavorvel, dado o desconhecimento mtuo dos hbitos lingusticos de jornalistas e linguistas.

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